quarta-feira, 2 de dezembro de 2015


quinta-feira, 11 de junho de 2015

Epifania de junho



Voltando a pé, da biblioteca pra casa umas seis horas, estive olhando o céu, quando me dei conta de que estava diante de um espetáculo cotidiano. Um degrade de azul que se encontra no horizonte com o resto de amarelo que deixou o sol que nem mais ali está. Só tinham duas estrelas no céu. Quando olhei pra trás, vi que na verdade eram três. Aquele céu limpo, lindo, com umas nuvens já roxas perto da linha do horizonte, lá longe... um clima bom, missão cumprida no dia de hoje... olhei pra tudo ao meu redor, e simplesmente quis agradecer a Deus por essa grande oportunidade. Essa oportunidade de existir, de estar no mundo. De respirar esse ar seco do mês de junho. De ter o afeto da minha mãe, de ter amado, de ter tanta gente viva na minha vida. De ter salvado dois gatos. De ter problemas e de poder resolver. De ter feito bem a um monte de gente, apesar de ser um tanto atrapalhado. Fiquei olhando aquelas duas estrelas, e lembrando daquela estrela que estava em minhas costas. Lembrei de Saint Exuperry, do Pequeno Príncipe, daquela raposa. E pensei em quem eu amo e está ali. Quem seriam aquelas três estrelas, ali, brilhando pra mim? Meu pai, Luísa e Turco, pensei. São eles três. Se exibindo, estando juntos, unidos em torno de mim. Me fazendo feliz e agradecido. Enchendo meus olhos de lágrimas. Uma delas brilhava tão forte, era grande... seria um planeta? São tantos planetas no cosmos... e o cosmos? Como será que está o universo nesse exato momento? Talvez do mesmo jeito de sempre. Um escuro gigante, e pedras andando pra lá e pra cá. São corpos celestes. De um céu que eu nem consigo alcançar. De repente esse monte de azul ao meu redor me pareceu um lençol, uma grande cortina fechando o planeta.. mudando de cor em Brasília. Uma manta linda... e aquelas estrelas agora pareciam até mesmo três furos na manta, e a manta azul que cobre a terra de uma imensa luz, com apenas três furos. Um morcego saiu de uma árvore e voou pelas minhas costas. Depois reparei que dois pássaros também voavam ali na frente, cada um para um rumo. Os últimos pássaros do entardecer. Todo mundo procurando suas casas, ou quem sabe um galhinho quebra-galho para passar a noite. E tudo já estava quase escuro mesmo... como o planeta anoitece veloz em Brasília... a vida também é veloz... Entrei pra dentro de casa, peguei o computador, e vim escrever na varanda, de baixo do meu pé de mini roseiras rosas. Rosas que eu nunca colhi. Elas nascem clarinhas, ficam bem rosa, e morrem escuras, lilases. Tudo junto na roseira também fica bonito. As nuvens que eram escuras no céu, agora estão altas, num cinza claro, mais claro que o céu, que agora já é todo azul escuro. Um manto cada vez mais esburacado, de muitas estrelas, competindo com cada vez mais luzes elétricas. Tem um gato fazendo bagunça num banco de areia de obra logo ali do outro lado da rua, meu gato passeia pela varanda de um lado pro outro querendo sair sem poder, e eu estou aqui, tomando um suco de graviola, do lado de rúculas bebês da minha horta, do meu pé de manjericão que é quase um ancião, em baixo da minha roseira, nada disso me pertence, mas eu acho que pertenço a tudo isso, e me sinto feliz. Obrigado.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

três cenas

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Lá vinha eu, voltando do sarau, por calçadas de uma avenida do Setor P Norte, Ceilândia, rumo à parada de ônibus. E quando eu menos esperava chegou um maluco de capuz me empurrando sacando uma arma pedindo minha carteira meu celular apontando na minha cara e, calma. Teve nada disso. Relaxa aí. Vinha eu pela calçada, na tranquila. Deixando pra trás o som do sarau, que nem deu tempo de se desafazer, pois logo ali na frente um culto fervia enquanto os irmãos tocavam num pequeno lote residencial adaptado para templo. Pra uns, manipulação, pra outros loucura, e segue o mundo abarrotado de juízes. A mim, só restou ralentar o passo e tentar curiar o que é que rolava ali dentro. Mal deu pra observar, mas parecia intenso. Sei lá. Eu nem tive tempo de pensar sobre isso, pois duas casa depois, umas seis ou sete pessoas dançavam um forró acelerado, que saía de dentro do porta-malas do Corsa Sedan branco que estava dentro da garagem e também servia como mesa para descansar os copos de bebida. Um casal de negros dançava com firmeza.  O cara fazia menos movimentos, e sorria um sorriso até leve. Terça à noite. Três casas de som. Três festas. Enquanto nos prédio de boy, nem se atreva a aumentar o volume do seu Youtube no seu notebook.



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Já tinha eu dado algumas informações àquela senhora sobre como descer no centro enquanto estávamos no verdinho. Não é dinheiro. Não é maconha. É só um daqueles micro-ônibus que faz os trajetos menores. E eu só queria escrever umas rimas. Depois que ela desceu na mesma parada que a minha, perguntou sobre a estação do metrô, que era logo ali em frente. E depois de explicar como é que fazia pra sair daquela estação e baldear pra chegar em Samambaia, nos separamos enquanto esperávamos o trem. Estava ali eu, já dentro do trem, sentado num banco e com as pernas em outro, um banco lateral. Bermuda larga, tênis surrado, pele parda e cabelo black. Nada mais que o check list de um baculejo. No banco que estava de frente com esse no qual eu apoiava os pés, percebi que uma senhora de trejeitos simples me olhava. Mas eu só queria escrever umas rimas. Passados uns cinco minutos e essa mulher resolveu levantar, o movimento chamou meu olhar e eu pude ver que ela vinha na minha direção. Sentou no assento lateral ali e me olhou. Viria me falar de Jesus. Ou então reclamar. Não seria outra coisa. Mas ela me olhou, e com a liberdade de quem é colega há tempos, me perguntou sem boa noite nem nada. Você sabe se no Hran tem dermatologista? Rolei de rir na minha alma. Da onde será que ela tirou que eu tinha respostas? O que será que poderia fazê-la pensar que eu sou assistente social, e que semana passada estive no mesmo hospital com uma adolescente que acompanho para uma consulta de emergência, nesse labirinto que é o serviço de saúde, até para quem é profissional de saúde? Pois tive a oportunidade de passar diversas orientações sobre isso, sobre uma questão do seu trabalho, que é como empregada doméstica numa casa de família, e até ajudei a trocar a foto de perfil do WhatsApp dela que ela pediu.



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Já tinha eu descido do trem, pegado meu carro na estação e estava chegando em casa quando vi um homem negro, todo sujo e maltrapilho, cabes baixo sentado ali na outra calçada, quase de frente com a minha. De primeira, pensei em ficar de olho. Vai que ele tenta entrar pelo portão quando abrir. Depois me senti um merda, quando lembrei da minha mais nova amiga de infância do metrô. Talvez um merda precavido, mas um merda. Entrei com o carro, de olho nos espelhos pra ver se esse cara continuava cabes baixo e inerte como havia de estar. Me veio à cabeça que, se eu quisesse escrever essa história um dia, seria uma história na qual eu sairia como um babaca qualquer, mais um cidadão fulano, e talvez ver meu reflexo nesse espelho do carro tenha sido o que me faltava para abrir o portão e ir lá ter com o cara. Tá tudo bem com você irmão? O cara levantou a cabeça em câmera lenta. Perguntei se ele estava precisando de alguma coisa. Ele respondeu com uma voz grave e vibrante, embora falando um pouco baixo, que estava precisando de um fósforo para acender o cigarro, e abriu uma das mãos, apresentando o que seria três cigarros ou um cigarro meio partido em três, não sei dizer. Falei que não tinha, que ele poderia tentar no bar logo ali na esquina, ele baixou a cabeça, ajeitou os pés na sandália surrada, levantou e saiu mancando, com seus pés castigados, um pouco se arrastando, rumo ao bar, com uma camisa de escola pública toda suja, por cima de outra camisa desgastada, e a aparência de quem não se cuida há um bom tempo. Enquanto ele dava as costas pra mim, resolvi insistir. Tá te faltando alguma coisa irmão? Perguntei, enquanto questionava a mim mesmo se eu teria condições de bancar a resposta, dependendo do que viesse, ao que ele virou só o pescoço enquanto caminhava e disse, me falta um fogo para acender meu cigarro, e seguiu, como alguém que só precisa de um palito de fósforo para resolver o que falta em sua vida.


quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Por que eu votarei em Fábio Félix para distrital

Esta aqui é minha declaração de voto para Deputado Distrital. Mas antes de prosseguir, acho importante algumas explicações sobre isso e também sobre quem sou.

Se você achou que com esse texto eu estou tentando influenciar alguém a votar em Fábio Félix 50321 para deputado distrital, você acertou. Há mais de uma década que milito ativamente para a transformação social da nossa cidade, e nesse caminho, encontrei muita gente que me diz direta ou indiremente: “confio em você, cara”! E é com essas pessoas que dialogo aqui, em primeiro lugar. Esse texto é uma conversa bem honesta sobre essa coisa esquisita que é o período eleitoral. Então, se puderem me dar um retorno, acho ótimo!
Quem me conhece um pouco, sabe que não sou filiado a partido nenhum, e que não escolhi a política institucional como meu caminho para tentar construir o poder popular, e para construir aquele mundo novo que sonhamos. Não é o espaço adequado pra mim - e eu digo pra mim – pois não sou o senhor da razão, e não detenho a verdade sobre que caminho cada um e cada uma deve seguir para tentar contribuir com as transformações necessárias para esse mundão. Então, se tem pessoas com boas intenções e boa conduta que acham que esse é o caminho pra elas, acho que tem mais é que tentar e fazer aquilo que acreditam (mas é bom ficarem atentos ao “Canto da Sereia” e aos “Pactos com o Diabo”, que geralmente pega as pessoas nesse meio!). Eu tenho muitas críticas à política institucional, e a todos os partidos que conheço (e até por isso até hoje não filiei a nenhum). Mas mesmo assim, sempre procuro usar o meu voto de forma que ele possa contribuir para as transformações sociais que eu tento construir coletivamente. Não sou da turma do “quanto pior, melhor”, e trabalhando como servidor público, na ponta, atendendo as pessoas mais pobres ao longo desses anos, pude ver por mim mesmo que certas coisas fazem, sim, diferença na vida de gente. Por isso é que tento sempre votar em quem possa ajudar a fazer diferença. Dito isso, agora vamos lá.


Acho que conheço o Fábio há exatos 10 anos. Eu devia estar no 3º semestre de Serviço Social na UnB quando ele ingressou nesse curso também. Companheiro de algumas viagens de ônibus por morarmos na mesma cidade, sempre que tomávamos a mesma condução, tínhamos ali mais de uma hora para estreitar os laços e conversar sobre movimento estudantil, Serviço Social, e outras coisas. Conversávamos também sobre cristianismo, pois participávamos ocasionalmente de um mesmo grupo cristão de contra-corrente e sem denominações. Eu lembro que nessa época, o Centro Acadêmico de Serivço Social passava por um momento ruim, e precisava retomar as atividades que andavam meio paradas. Um grupo de estudantes se juntou para tentar mudar essa situação, e o Fábio estava nele. E ele esteve nos principais espaços do movimento estudantil naquela época. Lutamos juntos na ocupação da Reitoria - ele mais ativamente do que eu, dormindo lá todos os dias –, no movimento Fora Arruda, na ocupação da Câmara Legislativa, e em vários outros espaços de luta e idealismo como esses.
Eu lembro que, no meio desse período, algumas figuras importantes do PT tinham sido expulsas e outras saído voluntariamente. Foi desse momento que surgiu o PSOL. Isso animou muita gente ansiosa por mudanças na esquerda, inclusive a mim e ao Fábio. Eu fiquei observando o processo, mas o Fábio mergulhou de cabeça. Ele é um dos fundadores do Psol aqui no DF, e isso tem mérito pra mim, pois é muito fácil entrar num partido quando ele já está dando certo. Difícil é passar por todo o processo anônimo e inglório que é necessário pra fazer qualquer movimento social engrenar. Em 2006, o Psol ainda estava se consolidando, o Fábio devia ter uns 20 anos e ainda estava no meio da graduação, Eram épocas de eleição. E o Fábio acabou concorrendo. Eu lembro de um dia ter encontrado ele na UnB, e ele tava com umas manchas super estranhas nos braços, e quando eu perguntei o que era, ele disse que era emocional. Na época, eu achava que não valeria a pena pra ele passar por essas coisas tão novo, e no meio de sua formação acadêmica. Mas o Fábio é um cara forte e valente, e acabou se formando no tempo certo, e depois fez o mesmo curso de mestrado que eu, o de Política Social ali na UnB. Hoje em dia eu também percebo que aquela candidatura de 2006, que ele agora retoma depois de oito anos, trouxe a ele experiência e traquejo nesse mundo infelizmente sujo que é a política. Hoje, sim, eu percebo que ele está preparado para ocupar esse tipo de espaço, e fazer a diferença que essa maioria de bundas moles que está ali dentro não tem coragem e ousadia pra fazer. Na verdade, o Fábio é um desses militantes que está em mil coisas ao mesmo tempo, assim como eu, e acredito que temos o mesmo motivo pra isso, que é essa imensa paixão pelas transformções sociais, pelo empoderamento do povo, e por escutar um chamado bem forte no coração que diz: “Você não foi feito apenas para observar a história ou criticá-la. Arregace essas mangas e faça a sua parte na transformação do mundão”! O problema é que se eu fosse contar todas as histórias, esse depoimento ficaria grande demais!
Mas para mim, existe ainda uma outra razão importante para que eu esteja apoiando essa candidatura do Fábio e declarando meu voto com tanta convicção. É porque faz alguns anos que militamos na defesa dos direitos da criança e do adolescente, sobretudo no sistema socioeducativo. Eu trabalhava onde, na época, era a Secretaria de Justiça do Distrito Federal. Estávamos todos animados quando foi feito um novo concurso pra área, e fiquei muito feliz quando vi que o nome do Fábio estava entre os aprovados nesse concurso. E eu não estava equivocado quando pensei que a presença dele somaria forças nessa luta. Fizemos greves juntos, propusemos política pública, e lutamos contra os desmandes que estão em curso contra os direitos dos/as adolescentes marginalizados de nossa cidade. Juntos com outros colegas de trabalho e de militância, criamos o Fórum de Justiça Juvenil do DF, e ainda vamos ter muitas histórias de lutas e vitórias para contar nessa cidade. Certeza!

E é por conhecê-lo dessa forma, por ter convivido com ele e ter dividido até hoje tantos espaços de luta e trabalho, que voto e convido você a votar também em Fábio Félix 50 321 para deputado distrital, para que a nossa cidade seja representada por gente que não se acovarda em fazer o que tem que ser feito para construirmos um mundo justo, igualitário e de paz.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

O espírito de Rei do camarote: ou a arte de privatizar um show público

Fiz aniversário quarta feira. Na quinta, o Jorge Ben Jor resolveu dar um show de graça em Brasília para comemorar comigo. Acho que depois do Chico, Jorge Ben é o meu cantor vivo preferido – se é que dá pra comparar – e além disso, tinha bem uns três anos que o Ben não vinha aqui. A ocasião parecia perfeita. Show de graça, povão no mei da rua, aniversário... prato cheio para o esquema Jorge Ben de músicas felizes, viajantes e dançantes.
Cheguei cedo e procurei um bom lugar, porque sou fã e queria aproveitar do melhor ângulo essa festa. Acabei achando um espacinho privilegiado, criado por dois carros estacionados naquela rua que costuma ser uma área comercial de Brasília durante todos os dias do ano, exceto quando esse festival acontece, e aquilo se torna uma grande pista de dança, um salão de festas a céu aberto. De um lado, o carro popular de algum coitado, desavisado, que esqueceu de tirar o carro para a festa, e infelizmente teve o carro servindo de apoio pra bebidas e outras coisas. Do outro lado uma camionete de caçamba aberta, um veículo de fretes e mudanças, que estava estacionado de frente pro palco, e teve sua caçamba ocupada por um grupo de pessoas com banquinhos e isopores de bebida o show inteiro. Fiquei ali naquele corredorzinho entre os dois carros esperando as duas horas de atraso do show se passarem, pois estava de frente pro palco numa boa distância, e com muito mais espaço do que qualquer outro lugar disputado fora dali.
Confesso que quando vi a galerinha sentada no caminhão de mudança de frente pro palco, pensei: “brasileiro é um bicho criativo mesmo, né”... mas minha percepção se inverteu totalmente momentos depois. Já se passava mais de uma hora e meia de espera, ali, em pé, quando eu decidi pedir emprestado pra gente dois banquinhos que estavam vazios. Só pra sentar por uns 5 minutos, enquanto os donos não chegavam e o show não começava. Eu sei que fui meio cara de pau, mas depois que recebi um belo de um não, acompanhado por desculpas esfarrapadas, fiquei bem sem graça. Momentos depois, um grupo que estava em pé atrás do caminhão começou a gritar: “Senta! Senta!” para algumas figuras que estavam em pé em cima da caçamba, piorando a vista ruim de todo mundo que estava ali. Umas dez pessoas no caminhão-camarote e Jorge Ben sobe no palco. Achei que ia ser de boa ver o show dali pra mim, mas na verdade não.














(eu juro que ali no fundinho é o Jorge Ben)











(um show de selfies para agregar valor à caçamba, quer dizer, ao camarote)






E olha que eu tenho mais de um e oitenta. Imagina pros/as mais baixos/as que estavam ali? Assim que o show começou, o cara pra quem eu pedi os banquinhos tentou se desculpar, explicando o inexplicável. Queria ter o dom de dar aquelas respostas de cinema, e ter dito “cada um age segundo sua própria natureza”, mas tudo o que consegui foi dar uns tapinhas no ombro do cara, e dizer “tá de boa..” com uma dose insuficiente de ironia.
O fato é que a ideia desse grupo é algo mais que criativa. Imagina se todo mundo resolvesse fazer algo parecido? E além do mais, ela parte do princípio de que, desde que você crie as condições, você pode, sim, privatizar um espaço no show público e chamar de seu. Mesmo que isso seja a implosão de todos os princípios de igualdade e acesso público desse festival de rua. Até teve uma situação curiosa, que um maluco que nem conhecia o grupinho simplesmente subiu no caminhão. Depois, botou a namorada pra cima. E eu vi os caras querendo reclamar quando ele quis promover o terceiro desconhecido ao camarote-brega. Mas, apesar de ter sido uma situação bem engraçada, quantos populares mais caberiam naquela caçamba dos melhor-que-todo-mundo? Enquanto Jorge cantava Zumbi, eu tive uma visão. “de um lado cana de açúcar, do outro lado, cafezal... ao centro senhores sentados”.
Recentemente, saiu na Folha de São Paulo uma matéria bem polêmica sobre os Yellow Blocs, indignados porque pagaram 5 mil por cabeça, pra ficar tendo que encostar numa ralé que só pagou trezentos conto. Aquilo era um misto de comédia e ofensa para as pessoas comuns que viram o vídeo. Algo muito parecido com Rei do Camarote da revista Veja. E olha que, coincidência ou não, a maioria dos rapazes do camarote-caminhão se pareciam um bocado com o tal Babaxander de Almeida. E a vontade de “stats” era tão grande que, depois do show de Jorge, quando o apresentador foi encerrar e agradecer, agradeceu a compreensão da vizinhança, e destacou bem positivo que tinha gente vendo a festa de camarote. Nessa hora, enquanto os canhões de luzes e as câmeras viraram para o público, me bateu vergonha alheia ver uma das mulheres da caçamba se levantar toda orgulhosa para receber sua homenagem por estar melhor que o povo, mas murchar todinha na mesma hora, quando se deu conta que se tratava das pessoas dos apartamentos sobreloja que lotaram suas varandas com amigos, até porque com um som daquela altura, não teriam outra opção a não ser se divertir.
Ninguém precisa de cinco mil reais ou bebidas que piscam para querer se achar melhor do que os outros e obter privilégios insustentáveis se fossem estendidos para 10% das pessoas. Basta um caminhão de frete num show público, uns banquinhos, e a certeza de que você pode sempre se dar bem, não importa como.

terça-feira, 3 de junho de 2014

#4

Depois de muito tempo de insistência é que fui enxergar. Eu com certeza estava me distanciando cada vez mais do meu destino. A chuva fina já havia encharcado minhas roupas e eu já estava começando a me odiar de novo. Maldita teimosia que me fez sair de tão perto para aquele lugar desconhecido, e a sacola de compras de papel descongelando as coisas e arriscando arrebentar. Não adiantou eu, já no meio do caminho errado, olhar as rotas no meio da chuva. Pois a cada vez que olhava aquele pedaço gigante que eu teria que contornar para chegar na avenida, tudo o que eu acabava fazendo era bancar o esperto e procurar um caminho mais curto. Mas a diferença entre o esperto e o teimoso é sutil como um coice, e foi assim que eu fui parar ali, de cara com trilhos intransponíveis de trem, sem saída, me vendo obrigado a fazer o caminho correto, além de ter que voltar um calvário ainda maior do que aquele que eu quis evitar no início, agora ensopado, com a cara molhada e as mãos congelando.
Haveria algum lugar aberto naquela cidade? É claro que não. Do céu ao asfalto, tudo era cinza. Do céu ao inferno. Ao meu redor não havia nada a não ser os trilhos que pareciam ir em direção aos dois sentidos do infinito. Mas aquelas escadarias ali poderiam até me servir pra sentar e botar a cabeça no lugar.
E se eu fosse o primeiro a voltar
Pra mudar o que eu fiz
Quem então agora eu seria?
Em algum momento naquele trajeto me subiu à cabeça e eu cantarolei aquela melodia nostálgica, cujas estrofes me chegaram como uma colcha de retalhos incompleta. E se eu for o primeiro a prever e poder desistir do que for dar errado? Dispenso a condição. E quer saber mesmo, pelo visto eu cheguei aqui porque quis. Ou pelo menos porque sou. E entre esquadros, semáforos e relógios com ponteiros demais, eu até que estou bem, bem melhor que essa coisa assombrosa. Gosto muito mais disso. A poesia do tumulto, do emaranhado e do desequilíbrio. Dali eu não sigo pra frente, mas também não ando de volta. A melodia aumentava de volume na minha cabeça e eu pensei, ora, se não sou eu, quem mais vai decidir o que é bom pra mim? E fui eu mesmo que me trouxe até aqui. Não estou só, nem perdido. Fui ao encontro de mim, e estou em minha companhia. Depois me lembrei, nem estou só comigo, meus sorvetes tamanho fofys coloridos estavam comigo, graças a eu ser quem sou. Coloquei essa música pra tocar, e ouvindo a letra com atenção, senti uma felicidade simples, e lembrei como até esses monstros que moram em nós tem algo de belo se seguramos a onda, os olhamos de frente e aprendemos que eles às vezes caminham com a gente.
Entre erros e acertos pequenos, dando o braço a torcer, na mesmíssima chuva de antes, retornando por todo o caminho errado que fiz, fui pra casa, pro quarto de hotel onde estava, dessa vez recorrendo um pouco mais ao droga do gps, admitindo que ele manja melhor dessas coisas que eu. Vento congelante, garoa, e um sorriso de leve por nem sentir mais os dedos e tudo e estar só, mas em paz. Por não ser ninguém nesse grupo de gente, por não fazer parte do grupo, mas de ver que eu estou com o planeta. Vou levando assim,que o acaso é amigo do meu coração quando fala comigo.

sábado, 3 de maio de 2014

À Malhada





Nunca se acostumar com ligações como essa. Eram mais ou menos oito horas da manhã quando um número desconhecido chamava. Era a veterinária. A princípio achei estranho, pois o combinado era buscar a Malhadinha às nove horas. Antes mesmo que eu pudesse assimilar o propósito daquela ligação, a doutora passou o recado. A Malhada não resistiu, e faleceu hoje no início da manhã. Aquela velha ligação, aquela velha sensação misturada e confusa. O encontro direto com a morte.
Logo agora, que eu estava determinado a acordar muito mais cedo no sábado do que de costume, logo agora que eu já pensava nos planos pra arcar com aquilo fosse preciso pra ela ficar bem. Eram planos. Mas a morte reduziu tudo a um ponto final.
Eu tava de boa em plena sexta à noite, com um amigo que se mudou da cidade e há muito tempo não via. Estávamos de final do nosso role, quando pediram socorro pro caso de um cachorrinho que havia sido atropelado. Resolvi entrar nessa e fomos eu e uma amiga até lá tentar socorrer. Ao chegar, nos deparamos com um cachorro gelado, quase inerte e vulnerável. Levamos ao hospital veterinário e enfim começamos a ver o que era possível ser feito. Enquanto a poeira baixava, a primeira descoberta. Era uma menina. Uma menina bem jovem, como os dentes podiam mostrar. Foi triste ver que das quatro pernas que tinha, apenas uma mal e mal se mexia. Triste, mas nem tanto, pois era só um cachorro, aliás, uma cachorra que cruzou meu caminho e fizemos o que julgamos que deveríamos fazer, assim como a pessoa que a encontrou, e cuidou dela ali, da maneira que pôde, passou a mensagem pra frente, e chegou até nós que pegamos o bastão. Foi triste também ver que a cachorra não sentia qualquer tipo de dor nessas pernas, mesmo com testes que levariam a dores profundas. Estava como que tetraplégica, triplégica, não sei. Era triste, mas cachorros de rua, ou melhor, animais de ruas existem aos montes. São milhões. E com certeza muitos estavam sofrendo igual ou pior naquele exato momento, e aquele animal ali era apenas mais um.
Era apenas mais um, não. Era “aquela que podemos ajudar”. Faz dez anos que vi no cinema aquele filme, Jardineiro Fiel, e essa frase até hoje não me foge à memória. Não lembro do nome daquela mulher, mas não esqueço essa frase, do momento em que ela e o marido estão passando de carro e ela o manda parar, pois percebeu que havia uma criança precisando de socorro na rua. O marido jardineiro e diplomata argumenta que são muitas naquela situação pela África toda, “mas essa é a que podemos ajudar”, sentencia a mulher, que para mim era a grande protagonista do filme que leva a alcunha do cara, que era apenas a sombra da esposa que teve. E entre todos os bichos sofrendo no mundo, aquele cruzou nosso caminho, e as coisas mudaram. Agora ela era a Malhada, e num minuto virou Malhadinha, e agora já havia pessoas na internet, pessoas no consultório, uma veterinária no pronto-socorro, e um ortopedista pro dia seguinte. Havia afeto, uma agenda de compromissos, e agora um lugar com colchão térmico, soro, remédios pra dor, e o que mais precisasse, além de um gato e um cachorro que estavam no mesmo quarto que ela, e assim ela não estaria mais só, num gramado, num frio de quase morte.
O fato é que a ligação veio, a mensagem de morte veio, e aquele gosto ruim, aquele sentimento ruim também veio. Veio, mas não ficou. Pois enquanto a veterinária ainda contava os detalhes da crise de hoje de manhã, o que me veio mais forte foi a hora em que eu peguei aquela cachorra pelos braços e tirei ela do meio da rua. Me veio a imagem imaginada, de ela deitada num colchão confortável, aquecido, expulsando a sensão de corpo morto gelado, e cedendo lugar à condição de cadela mimada, cuidada, amada. E, por fim, enquanto eu voltava à conversa com veterinária no telefone, e percebia que ela estava ali, tentando se virar como dava, dentro das limitações de um hospital particular, para tentar não tornar tudo aquilo em negócios, e disse que conseguiria transportar e cremar a Malhada sem custos adicionais aos que já havíamos pago, me veio o sentimento de que éramos um time, uma rede, uma pequena nação de pessoas que se importam com a vida e lutam contra sua banalização, todas aquelas pessoas que se importaram com essa e com todas as outras histórias tão parecidas e tão singulares... e o sentimento de gratidão que um cachorro consegue passar é tão grande....

Vai em paz, Malhadinha, obrigado por tudo.
 
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