Nunca se acostumar com ligações como essa. Eram mais ou menos oito horas da manhã quando um número desconhecido chamava. Era a veterinária. A princípio achei estranho, pois o combinado era buscar a Malhadinha às nove horas. Antes mesmo que eu pudesse assimilar o propósito daquela ligação, a doutora passou o recado. A Malhada não resistiu, e faleceu hoje no início da manhã. Aquela velha ligação, aquela velha sensação misturada e confusa. O encontro direto com a morte.
Logo
agora, que eu estava determinado a acordar muito mais cedo no sábado
do que de costume, logo agora que eu já pensava nos planos pra arcar
com aquilo fosse preciso pra ela ficar bem. Eram planos. Mas a morte
reduziu tudo a um ponto final.
Eu tava
de boa em plena sexta à noite, com um amigo que se mudou da cidade e
há muito tempo não via. Estávamos de final do nosso role, quando
pediram socorro pro caso de um cachorrinho que havia sido atropelado.
Resolvi entrar nessa e fomos eu e uma amiga até lá tentar socorrer.
Ao chegar, nos deparamos com um cachorro gelado, quase inerte e
vulnerável. Levamos ao hospital veterinário e enfim começamos a
ver o que era possível ser feito. Enquanto a poeira baixava, a
primeira descoberta. Era uma menina. Uma menina bem jovem, como os
dentes podiam mostrar. Foi triste ver que das quatro pernas que
tinha, apenas uma mal e mal se mexia. Triste, mas nem tanto, pois era
só um cachorro, aliás, uma cachorra que cruzou meu caminho e
fizemos o que julgamos que deveríamos fazer, assim como a pessoa que
a encontrou, e cuidou dela ali, da maneira que pôde, passou a
mensagem pra frente, e chegou até nós que pegamos o bastão. Foi
triste também ver que a cachorra não sentia qualquer tipo de dor
nessas pernas, mesmo com testes que levariam a dores profundas.
Estava como que tetraplégica, triplégica, não sei. Era triste, mas
cachorros de rua, ou melhor, animais de ruas existem aos montes. São
milhões. E com certeza muitos estavam sofrendo igual ou pior naquele
exato momento, e aquele animal ali era apenas mais um.
Era
apenas mais um, não. Era “aquela que podemos ajudar”. Faz dez
anos que vi no cinema aquele filme, Jardineiro Fiel, e essa frase até
hoje não me foge à memória. Não lembro do nome daquela mulher,
mas não esqueço essa frase, do momento em que ela e o marido estão
passando de carro e ela o manda parar, pois percebeu que havia uma
criança precisando de socorro na rua. O marido jardineiro e
diplomata argumenta que são muitas naquela situação pela África
toda, “mas essa é a que podemos ajudar”, sentencia a mulher, que
para mim era a grande protagonista do filme que leva a alcunha do
cara, que era apenas a sombra da esposa que teve. E entre todos os
bichos sofrendo no mundo, aquele cruzou nosso caminho, e as coisas
mudaram. Agora ela era a Malhada, e num minuto virou Malhadinha, e
agora já havia pessoas na internet, pessoas no consultório, uma
veterinária no pronto-socorro, e um ortopedista pro dia seguinte.
Havia afeto, uma agenda de compromissos, e agora um lugar com colchão
térmico, soro, remédios pra dor, e o que mais precisasse, além de
um gato e um cachorro que estavam no mesmo quarto que ela, e assim
ela não estaria mais só, num gramado, num frio de quase morte.
O fato é
que a ligação veio, a mensagem de morte veio, e aquele gosto ruim,
aquele sentimento ruim também veio. Veio, mas não ficou. Pois
enquanto a veterinária ainda contava os detalhes da crise de hoje de
manhã, o que me veio mais forte foi a hora em que eu peguei aquela
cachorra pelos braços e tirei ela do meio da rua. Me veio a imagem
imaginada, de ela deitada num colchão confortável, aquecido,
expulsando a sensão de corpo morto gelado, e cedendo lugar à
condição de cadela mimada, cuidada, amada. E, por fim, enquanto eu
voltava à conversa com veterinária no telefone, e percebia que ela
estava ali, tentando se virar como dava, dentro das limitações de
um hospital particular, para tentar não tornar tudo aquilo em
negócios, e disse que conseguiria transportar e cremar a Malhada sem
custos adicionais aos que já havíamos pago, me veio o sentimento de
que éramos um time, uma rede, uma pequena nação de pessoas que se
importam com a vida e lutam contra sua banalização, todas aquelas
pessoas que se importaram com essa e com todas as outras histórias
tão parecidas e tão singulares... e o sentimento de gratidão que
um cachorro consegue passar é tão grande....
Vai em
paz, Malhadinha, obrigado por tudo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário