quinta-feira, 21 de março de 2013

Coração de Pit Bull



Não foi apenas uma década de convivência. Amizade e companheirismo não são apenas contato ou presença. Uma década de edificação, formação... éramos eu e você dois filhotes quando passamos a viver juntos. E antes de mim, era você e seu irmão. Eu sei porque escolhi você, na verdade. Te escolhi porque enquanto brincávamos todos, você agarrou um paninho e não soltava de jeito nenhum. Levantamos o pano, e você saiu do chão junto com ele. Eu tinha que decidir rápido, vocês dois eram parecidos pra eu tomar decisão. Sua determinação pelo pano me fez te escolher. Saí daquela casa feliz. Escolhi o cachorro que melhor se agarrava ao pano. E quem diria que essa era a menor de suas qualidades?
A primeira lição que eu poderia dizer que aprendi com você arremata a mandala da minha vida contigo. Hoje, aqui, na flagrante ausência sua aqui do meu lado, percebo você me ensinando ao longo de uma vida inteira o quanto você era mais que uma mordida em um pedaço de pano. O quanto você foi bem mais. Olhando melhor, acho até que aprendi isso cedo. Ou quem diria que o pit bull que melhor se agarrava ao pano não aprendeu a escalar, e que sua mandíbula, por forte que fosse, vacilava como a de um cachorro qualquer ao brincar de puxar? O filhote feroz pendurado no pano deu lugar ao jovem lambão. E eu me lembro bem quando isso começou, naquele dia qualquer, que ficou eternizado em minha memória, de quando você veio do nada e me lambeu. Eu gostei, dei risada, e você de pronto continuou aquela brincadeira com sua linguinha macia de filhote e nos divertimos bastante naquele momento. Eu jamais iria pensar que aquela minha reação iria consolidar para sempre o cachorro mais lambedor que eu vi na minha vida. E isso era só um exemplo, exemplo do cão de caráter, de qualidades profundas que você foi.
Como já disse, companheirismo é bem mais do que convivência. E uma década tendo você como companheiro me deixou de legado um coração de pit bull. E para o caso de algum babaca estar lendo essa carta – engraçado como nós passamos a vida inteira nos precavendo de babacas e até hoje não pára, hein! - eu explico com gosto, com ares de vitória, que o espírito de pit bull é maior, bem maior que atacar outro ser vivo e não soltar nunca. Eu posso explicar e dizer: todos os cães que mataram, mataram porque foram enganados e ensinados a fazer esse tipo de coisa, acreditando que faziam o que é certo. Eu não culpo os cachorros, que chegam a matar por cumprirem o que lhes fora ensinado que é certo. Por outro lado, tenho pena e mais pena, de toda a legião de humanos babacas que sabem o que é certo, mas por pura mediocridade, comodismo ou preguiça, continuam fazendo o errado. E existem também aqueles que simplesmente foram enganados, e acham, por isso, que o certo é o errado. Um exemplo são todas essas pessoas que acreditam piamente que os pit bulls são maus de natureza. Mas a verdade é que o coração de um pit bull não é um coração assassino ou cruel. É um coração extremamente determinado, e quando isso é canalizado para o bem, se segura que aí vem cachorro de lambidas irrefreáveis! E se a sorte for enorme como foi a minha, é um coração determinado até mesmo a acolher e conquistar, depois de velho, uma gatinha que insiste em lhe dar unhadas de lhe sangrar o focinho.
Confesso que te comprei. Paguei cem reais em você, mas confesso também que quem me ensinou que 'não se compra um amigo' não foi nenhum texto sobre veganismo dos muitos que eu li em minha vida, foi o amor invalorável que você me ofereceu. Você me deu, não a chance de burlar essa máxima e conseguir comprar um amigo, você me ensinou o que é Graça. De uma maneira que nenhum texto da Bíblia havia me ensinado antes. Comprei você, e você me ensinou que amigos não se compram, mas me deu a graça de ter sua amizade incondicional assim mesmo. O seu espírito, a sua garra de pit bull destruiu e despedaçou a visão de mercado que eu tinha dos cães na minha adolescência, com uma amizade determinada e insistente. Hoje você não está mais aqui. Mas me deixou seu legado. O seu coração determinado, focado. O significado da palavra perseverante é maior para mim do que para as pessoas comuns, depois que você me ensinou o que é com sua vida. Você é a subversão da brutalidade. E se você foi, eu também posso ser. E se alguém um dia me disse que sou casca grossa, certamente foi porque sua língua de lixa assim forjou minha pele.

terça-feira, 19 de março de 2013

Carta para poucos


Passados os rugidos de leão do dia que o Turco morreu, estranho em minha boca o aveludado das palavras que saem frágeis e amenas, como se saíssem de um coração que bombeia mais fraco, ou como se nem palavras eu tivesse mais para falar, ou mesmo voz. Da mesma forma me estranha o escrever no teclado, cheio de dedos, como se eu digitasse nas costas de uma criança que eu não pudesse acordar. O que ocorre é que minha alma está profundamente entristecida com a partida daquele cachorro. Profundamente triste, e acho que é de bom tom se entristecer um bocado no mundo de hoje, onde viver é ser assaltado e assediado pela condição do etéreo e do ópio, cada vez mais sofisticados, que nos livram da condenação à tristeza profunda, mas também retiram sutilmente o acesso à felicidade profunda, e nos desumanizam naquilo que mais nos constitui como vivos. O sentir.
E é justamente por sentir, sentir profundamente a presença, a felicidade e a companhia daquele cachorro é que me sinto profundamente entristecido e em crise, agora que ele se foi. Mas então se é por isso, aceito a condição e as consequências de amar justamente um cachorro, que de vida é um sopro ainda menor do que a vida de um humano. Mas é que a morte às vezes vem sem avisar, e como alguém que tem pressa, nos leva das mãos aqueles que amamos ainda mais cedo do que já iriam ao final desse breve hálito de vida que conduz à velhice. E quando isso acontece, dói. Dói se acontece com aqueles que amamos. E na medida com que amamos, e fomos felizes, e juntos tivemos uma paz singular de nós dois, e nos sentimos plenos e completos nesse encontro, com a mesma medida sofreremos a falta de tudo, independente de como lidamos com isso. A palavra crise, antes de assumir conotações de problema ou conflito, deriva de krisis, que por sua vez significa separar... o problema é o que decorre dessa separação.
Mas, sabe, é em meio a essa crise e a essa profunda dor, que também posso sorrir. Sorrir, e dizer para a morte que, se ela chegou pra matar, chegou tarde. Pois a dor é a prova de que juntos vivemos sentimentos tão fortes, que são eternos demais para serem medidos por tempo de vida. Isso é mais do que vida. E se eu lembro do ápice das estripulias daquele cachorro, então posso quase gritar, em meio a risadas e lágrimas, um ébrio, um deboche no meio da cara da morte.
Mas, passados os devaneios de uma felicidade e um amor que transcendem a morte, eu olho ao redor, e vejo que escrevo sozinho. Meu coautor não responde entre nós, e agora eu escrevo completamente desfalcado, pois antes, eu entrava com a escrita, enquanto ele entrava com o seu estar deitado no tapete aqui perto, e lambidas de meia em meia hora. Eu escrevo sozinho, eu me sinto sozinho de tudo e isso dói. E eu tenho passado triste pelos dias. Em crise. Querendo voltar no passado, achando que viver é ruim pois perdemos amores, querendo acordar de um péssimo sonho. E eu ainda tenho que conviver com a triste realidade de que tem gente me acha um fresco, um exagerado ou até mesmo um idiota, porque sofro com a morte de um cão. Mas era só um cachorro, me dizem, às vezes em palavras mais indiretas. Sinceramente, não sei o que deu nessa gente. E o pior é que é tanta gente. Poucos entendem. Foi o que uma amiga me disse e me deu segurança de me apossar da minha dor. E como diria Leminski, carrego o peso da dor como um homem que carrega medalhas. É o prêmio agridoce de sofrer por ter amado. Poucos entendem... por isso escrevo apenas para poucos, para os amantes, só para dizer que na verdade não escrevo sozinho. Que mais do que nunca, escrevo na parceria dos roncos e gemidos do meu velho amigo Turco, com a aspereza de sua língua rosada e enorme, que já não fazia surpresa à minha pele ressecada e peluda. O cachorro está comigo, está presente, e como bom companheiro, me lambe as feridas da alma, da falta que ele mesmo me faz.
 
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