sábado, 3 de maio de 2014

À Malhada





Nunca se acostumar com ligações como essa. Eram mais ou menos oito horas da manhã quando um número desconhecido chamava. Era a veterinária. A princípio achei estranho, pois o combinado era buscar a Malhadinha às nove horas. Antes mesmo que eu pudesse assimilar o propósito daquela ligação, a doutora passou o recado. A Malhada não resistiu, e faleceu hoje no início da manhã. Aquela velha ligação, aquela velha sensação misturada e confusa. O encontro direto com a morte.
Logo agora, que eu estava determinado a acordar muito mais cedo no sábado do que de costume, logo agora que eu já pensava nos planos pra arcar com aquilo fosse preciso pra ela ficar bem. Eram planos. Mas a morte reduziu tudo a um ponto final.
Eu tava de boa em plena sexta à noite, com um amigo que se mudou da cidade e há muito tempo não via. Estávamos de final do nosso role, quando pediram socorro pro caso de um cachorrinho que havia sido atropelado. Resolvi entrar nessa e fomos eu e uma amiga até lá tentar socorrer. Ao chegar, nos deparamos com um cachorro gelado, quase inerte e vulnerável. Levamos ao hospital veterinário e enfim começamos a ver o que era possível ser feito. Enquanto a poeira baixava, a primeira descoberta. Era uma menina. Uma menina bem jovem, como os dentes podiam mostrar. Foi triste ver que das quatro pernas que tinha, apenas uma mal e mal se mexia. Triste, mas nem tanto, pois era só um cachorro, aliás, uma cachorra que cruzou meu caminho e fizemos o que julgamos que deveríamos fazer, assim como a pessoa que a encontrou, e cuidou dela ali, da maneira que pôde, passou a mensagem pra frente, e chegou até nós que pegamos o bastão. Foi triste também ver que a cachorra não sentia qualquer tipo de dor nessas pernas, mesmo com testes que levariam a dores profundas. Estava como que tetraplégica, triplégica, não sei. Era triste, mas cachorros de rua, ou melhor, animais de ruas existem aos montes. São milhões. E com certeza muitos estavam sofrendo igual ou pior naquele exato momento, e aquele animal ali era apenas mais um.
Era apenas mais um, não. Era “aquela que podemos ajudar”. Faz dez anos que vi no cinema aquele filme, Jardineiro Fiel, e essa frase até hoje não me foge à memória. Não lembro do nome daquela mulher, mas não esqueço essa frase, do momento em que ela e o marido estão passando de carro e ela o manda parar, pois percebeu que havia uma criança precisando de socorro na rua. O marido jardineiro e diplomata argumenta que são muitas naquela situação pela África toda, “mas essa é a que podemos ajudar”, sentencia a mulher, que para mim era a grande protagonista do filme que leva a alcunha do cara, que era apenas a sombra da esposa que teve. E entre todos os bichos sofrendo no mundo, aquele cruzou nosso caminho, e as coisas mudaram. Agora ela era a Malhada, e num minuto virou Malhadinha, e agora já havia pessoas na internet, pessoas no consultório, uma veterinária no pronto-socorro, e um ortopedista pro dia seguinte. Havia afeto, uma agenda de compromissos, e agora um lugar com colchão térmico, soro, remédios pra dor, e o que mais precisasse, além de um gato e um cachorro que estavam no mesmo quarto que ela, e assim ela não estaria mais só, num gramado, num frio de quase morte.
O fato é que a ligação veio, a mensagem de morte veio, e aquele gosto ruim, aquele sentimento ruim também veio. Veio, mas não ficou. Pois enquanto a veterinária ainda contava os detalhes da crise de hoje de manhã, o que me veio mais forte foi a hora em que eu peguei aquela cachorra pelos braços e tirei ela do meio da rua. Me veio a imagem imaginada, de ela deitada num colchão confortável, aquecido, expulsando a sensão de corpo morto gelado, e cedendo lugar à condição de cadela mimada, cuidada, amada. E, por fim, enquanto eu voltava à conversa com veterinária no telefone, e percebia que ela estava ali, tentando se virar como dava, dentro das limitações de um hospital particular, para tentar não tornar tudo aquilo em negócios, e disse que conseguiria transportar e cremar a Malhada sem custos adicionais aos que já havíamos pago, me veio o sentimento de que éramos um time, uma rede, uma pequena nação de pessoas que se importam com a vida e lutam contra sua banalização, todas aquelas pessoas que se importaram com essa e com todas as outras histórias tão parecidas e tão singulares... e o sentimento de gratidão que um cachorro consegue passar é tão grande....

Vai em paz, Malhadinha, obrigado por tudo.
 
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