Fiz aniversário quarta
feira. Na quinta, o Jorge Ben Jor resolveu dar um show de graça em
Brasília para comemorar comigo. Acho que depois do Chico, Jorge Ben
é o meu cantor vivo preferido – se é que dá pra comparar – e
além disso, tinha bem uns três anos que o Ben não vinha aqui. A
ocasião parecia perfeita. Show de graça, povão no mei da rua,
aniversário... prato cheio para o esquema Jorge Ben de músicas
felizes, viajantes e dançantes.
Cheguei cedo e procurei
um bom lugar, porque sou fã e queria aproveitar do melhor ângulo
essa festa. Acabei achando um espacinho privilegiado, criado por dois
carros estacionados naquela rua que costuma ser uma área comercial
de Brasília durante todos os dias do ano, exceto quando esse
festival acontece, e aquilo se torna uma grande pista de dança, um
salão de festas a céu aberto. De um lado, o carro popular de algum
coitado, desavisado, que esqueceu de tirar o carro para a festa, e
infelizmente teve o carro servindo de apoio pra bebidas e outras
coisas. Do outro lado uma camionete de caçamba aberta, um veículo
de fretes e mudanças, que estava estacionado de frente pro palco, e
teve sua caçamba ocupada por um grupo de pessoas com banquinhos e
isopores de bebida o show inteiro. Fiquei ali naquele corredorzinho
entre os dois carros esperando as duas horas de atraso do show se
passarem, pois estava de frente pro palco numa boa distância, e com
muito mais espaço do que qualquer outro lugar disputado fora dali.
Confesso que quando vi
a galerinha sentada no caminhão de mudança de frente pro palco,
pensei: “brasileiro é um bicho criativo mesmo, né”... mas
minha percepção se inverteu totalmente momentos depois. Já se
passava mais de uma hora e meia de espera, ali, em pé, quando eu
decidi pedir emprestado pra gente dois banquinhos que estavam vazios.
Só pra sentar por uns 5 minutos, enquanto os donos não chegavam e o
show não começava. Eu sei que fui meio cara de pau, mas depois que
recebi um belo de um não, acompanhado por desculpas esfarrapadas,
fiquei bem sem graça. Momentos depois, um grupo que estava em pé
atrás do caminhão começou a gritar: “Senta! Senta!” para
algumas figuras que estavam em pé em cima da caçamba, piorando a
vista ruim de todo mundo que estava ali. Umas dez pessoas no
caminhão-camarote e Jorge Ben sobe no palco. Achei que ia ser de boa
ver o show dali pra mim, mas na verdade não.
(eu juro que ali no fundinho é o Jorge Ben)
(um show de selfies para agregar valor à caçamba, quer dizer, ao camarote)
E olha que eu tenho
mais de um e oitenta. Imagina pros/as mais baixos/as que estavam ali?
Assim que o show começou, o cara pra quem eu pedi os banquinhos
tentou se desculpar, explicando o inexplicável. Queria ter o dom de
dar aquelas respostas de cinema, e ter dito “cada um age segundo
sua própria natureza”, mas tudo o que consegui foi dar uns
tapinhas no ombro do cara, e dizer “tá de boa..” com uma dose
insuficiente de ironia.
O fato é que a ideia
desse grupo é algo mais que criativa. Imagina se todo mundo
resolvesse fazer algo parecido? E além do mais, ela parte do
princípio de que, desde que você crie as condições, você pode,
sim, privatizar um espaço no show público e chamar de seu. Mesmo
que isso seja a implosão de todos os princípios de igualdade e
acesso público desse festival de rua. Até teve uma situação
curiosa, que um maluco que nem conhecia o grupinho simplesmente subiu
no caminhão. Depois, botou a namorada pra cima. E eu vi os caras
querendo reclamar quando ele quis promover o terceiro desconhecido ao
camarote-brega. Mas, apesar de ter sido uma situação bem engraçada,
quantos populares mais caberiam naquela caçamba dos
melhor-que-todo-mundo? Enquanto Jorge cantava Zumbi, eu tive uma
visão. “de um lado cana de açúcar, do outro lado, cafezal... ao
centro senhores sentados”.
Recentemente, saiu na
Folha de São Paulo uma matéria bem polêmica sobre os Yellow Blocs,
indignados porque pagaram 5 mil por cabeça, pra ficar tendo que
encostar numa ralé que só pagou trezentos conto. Aquilo era um
misto de comédia e ofensa para as pessoas comuns que viram o vídeo.
Algo muito parecido com Rei do Camarote da revista Veja. E olha que,
coincidência ou não, a maioria dos rapazes do camarote-caminhão se
pareciam um bocado com o tal Babaxander de Almeida. E a vontade de
“stats” era tão grande que, depois do show de Jorge, quando o
apresentador foi encerrar e agradecer, agradeceu a compreensão da
vizinhança, e destacou bem positivo que tinha gente vendo a festa de
camarote. Nessa hora, enquanto os canhões de luzes e as câmeras
viraram para o público, me bateu vergonha alheia ver uma das
mulheres da caçamba se levantar toda orgulhosa para receber sua
homenagem por estar melhor que o povo, mas murchar todinha na mesma
hora, quando se deu conta que se tratava das pessoas dos apartamentos
sobreloja que lotaram suas varandas com amigos, até porque com um
som daquela altura, não teriam outra opção a não ser se divertir.
Ninguém precisa de
cinco mil reais ou bebidas que piscam para querer se achar melhor do
que os outros e obter privilégios insustentáveis se fossem
estendidos para 10% das pessoas. Basta um caminhão de frete num show
público, uns banquinhos, e a certeza de que você pode sempre se dar
bem, não importa como.