terça-feira, 19 de março de 2013

Carta para poucos


Passados os rugidos de leão do dia que o Turco morreu, estranho em minha boca o aveludado das palavras que saem frágeis e amenas, como se saíssem de um coração que bombeia mais fraco, ou como se nem palavras eu tivesse mais para falar, ou mesmo voz. Da mesma forma me estranha o escrever no teclado, cheio de dedos, como se eu digitasse nas costas de uma criança que eu não pudesse acordar. O que ocorre é que minha alma está profundamente entristecida com a partida daquele cachorro. Profundamente triste, e acho que é de bom tom se entristecer um bocado no mundo de hoje, onde viver é ser assaltado e assediado pela condição do etéreo e do ópio, cada vez mais sofisticados, que nos livram da condenação à tristeza profunda, mas também retiram sutilmente o acesso à felicidade profunda, e nos desumanizam naquilo que mais nos constitui como vivos. O sentir.
E é justamente por sentir, sentir profundamente a presença, a felicidade e a companhia daquele cachorro é que me sinto profundamente entristecido e em crise, agora que ele se foi. Mas então se é por isso, aceito a condição e as consequências de amar justamente um cachorro, que de vida é um sopro ainda menor do que a vida de um humano. Mas é que a morte às vezes vem sem avisar, e como alguém que tem pressa, nos leva das mãos aqueles que amamos ainda mais cedo do que já iriam ao final desse breve hálito de vida que conduz à velhice. E quando isso acontece, dói. Dói se acontece com aqueles que amamos. E na medida com que amamos, e fomos felizes, e juntos tivemos uma paz singular de nós dois, e nos sentimos plenos e completos nesse encontro, com a mesma medida sofreremos a falta de tudo, independente de como lidamos com isso. A palavra crise, antes de assumir conotações de problema ou conflito, deriva de krisis, que por sua vez significa separar... o problema é o que decorre dessa separação.
Mas, sabe, é em meio a essa crise e a essa profunda dor, que também posso sorrir. Sorrir, e dizer para a morte que, se ela chegou pra matar, chegou tarde. Pois a dor é a prova de que juntos vivemos sentimentos tão fortes, que são eternos demais para serem medidos por tempo de vida. Isso é mais do que vida. E se eu lembro do ápice das estripulias daquele cachorro, então posso quase gritar, em meio a risadas e lágrimas, um ébrio, um deboche no meio da cara da morte.
Mas, passados os devaneios de uma felicidade e um amor que transcendem a morte, eu olho ao redor, e vejo que escrevo sozinho. Meu coautor não responde entre nós, e agora eu escrevo completamente desfalcado, pois antes, eu entrava com a escrita, enquanto ele entrava com o seu estar deitado no tapete aqui perto, e lambidas de meia em meia hora. Eu escrevo sozinho, eu me sinto sozinho de tudo e isso dói. E eu tenho passado triste pelos dias. Em crise. Querendo voltar no passado, achando que viver é ruim pois perdemos amores, querendo acordar de um péssimo sonho. E eu ainda tenho que conviver com a triste realidade de que tem gente me acha um fresco, um exagerado ou até mesmo um idiota, porque sofro com a morte de um cão. Mas era só um cachorro, me dizem, às vezes em palavras mais indiretas. Sinceramente, não sei o que deu nessa gente. E o pior é que é tanta gente. Poucos entendem. Foi o que uma amiga me disse e me deu segurança de me apossar da minha dor. E como diria Leminski, carrego o peso da dor como um homem que carrega medalhas. É o prêmio agridoce de sofrer por ter amado. Poucos entendem... por isso escrevo apenas para poucos, para os amantes, só para dizer que na verdade não escrevo sozinho. Que mais do que nunca, escrevo na parceria dos roncos e gemidos do meu velho amigo Turco, com a aspereza de sua língua rosada e enorme, que já não fazia surpresa à minha pele ressecada e peluda. O cachorro está comigo, está presente, e como bom companheiro, me lambe as feridas da alma, da falta que ele mesmo me faz.

7 comentários:

Daniel Kirjner disse...

Tiram-me o riso da cara estas pessoas que querem definir o luto do outro.No fundo, é a cultura de comprar cachorros que faz com que as pessoas concebam seus irmãos e companheiros, talvez os mais fiéis que terão durante toda vida, como simples apêndices da decoração, como uma prateleira, um penico, ou um aspirador de pó. O maior problema da sociedade atual é que ninguém se dispõe a compreender o amor e a afeição, enquanto aceitam de bom grado, como cotidiana, a violência institucionalizada e fomentada pelo Estado do mal-estar social. Perder um cão não é como, é perder um membro da família. O Turco não era um objeto a mais na garagem, pelas escadas e alicerces. Ele é quem dava sentido aos alicerces, escadas e à garagem. Sua imagem deixa um vazio frente ao portão que torna insignificante o portão sem sua memória. O Turco era a graça, a alma do portão, da garagem, das escadas, dos alicerces. Um pulso de significado, que é o que trasnforma o concreto em lar.

O choro por ele não é só bem vindo, mas uma amostra que existem pessoas de verdade ainda neste mundo.

Lila disse...

Tão mais sensíveis e verdadeiros que nós, esses bichos. Tão mais leais e seguros da lealdade. Nos ensinam tanto, nos cuidam tanto e de um jeito tão puro. O que fica é sempre gratidão: pelo amor gratuito, pelo cuidado e pela companhia. Turco é um lindo e agora brinca no céu dos cachorros. Pode deixar, que a Lis cuida dele direitinho. :)

Raquel Mary disse...

Leo, assim como o Turco, a Yanka estave sempre em nossas vidas como um membro da familia... a casa esta vazia, o portao ta sem graça, as portas ficam abertas sem lógica..... e dói bastante.......
Mas estamos procurando conforto em saber que assim, como seres imortais que somos, rogamos a DEUS a oportunidade de um novo reencontro pela estrada..... tendo a certeza de que nossos companheiros foram TÃO ESPECIAIS, TÃO ESPECIAIS, que até o nosso MESTRE quis levá-los para um mundo melhor.......
A Yankinha e o Turco estão correndo com outros parceiros em um gramado bem verdinho.......... saudades

Natalia disse...

Nossa. Tem duas semanas que minha filhota de quatro patas se foi e percebi o quanto minha vida mudou sem a presença dela. Dói muito mesmo. A morte tem gosto amargo que fica entalado na garganta.Só o tempo mesmo pra ajudar a digerir. Querido Léo, sua carta chegou a mim me ajudando a botar pra fora o que eu não conseguia. Chegou me confortando, afirmando que o que eu venho sentindo é legítimo, que é sincero e que não estou louca de sofrer pela perda da minha cachorrinha amada, da minha filha e companheira Lua. Perdi um pedacinho da minha família, da minta rotina, perdi um olhar, uma lambida, um banar de rabo que dava sentido a tantas coisas, às bandeiras que levanto. E eu nem tinha noção do quanto ela alavancava minha vida. Nesse momento estou buscando me reconstruir. Sei que ficará tudo bem, como já tem ficado, dia após dia. Sinto gratidão enorme a essa "carta para poucos", amigo Léo, por sua sensibilidade de poeta que aborda tantos temas, nesse caso a dor, de maneira universal e toca fundo, mas bem fundo mesmo, nos ajudando a elaborar processos muito difíceis e doloridos. Gratidão, gratidão, gratidão.

Anônimo disse...

Seu texto é simplesmente lindo! Vc transmitiu o q qq pessoa q ama sente ao perder o amado... E o amor, o verdadeiro, não faz escolhas, simplesmente é... Um cachorro é um grande amigo e companheiro de vida... O vazio, a crise, a dor... São inevitáveis...

Patricia Tai disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Patricia Tai disse...

Recebi o link da sua carta pela Natalia, hoje, e me identifiquei com absolutamente tudo. Minha gata Magali - minha filha - me deixou, ontem fez cinco meses, e ontem à noite eu estava sozinha em casa, aflita e angustiada, andando em círculos, me lembrando. Agora, estou em prantos como se tivesse acontecido hoje. Ela tinha 20 anos e eu não tenho referência de quem eu sou sem ela, sem a presença dela. Não me lembro como é viver sem ela, e não estou a fim de aprender. O meu luto vai durar o resto da vida. Nunca mais seremos os mesmos depois dessa experiência, nunca mais o coração vai bombear com a mesma força.

 
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