Lá vinha eu, voltando
do sarau, por calçadas de uma avenida do Setor P Norte, Ceilândia,
rumo à parada de ônibus. E quando eu menos esperava chegou um
maluco de capuz me empurrando sacando uma arma pedindo minha carteira
meu celular apontando na minha cara e, calma. Teve nada disso. Relaxa
aí. Vinha eu pela calçada, na tranquila. Deixando pra trás o som
do sarau, que nem deu tempo de se desafazer, pois logo ali na frente
um culto fervia enquanto os irmãos tocavam num pequeno lote
residencial adaptado para templo. Pra uns, manipulação, pra outros
loucura, e segue o mundo abarrotado de juízes. A mim, só restou
ralentar o passo e tentar curiar o que é que rolava ali dentro. Mal deu
pra observar, mas parecia intenso. Sei lá. Eu nem tive tempo de
pensar sobre isso, pois duas casa depois, umas seis ou sete pessoas
dançavam um forró acelerado, que saía de dentro do porta-malas do
Corsa Sedan branco que estava dentro da garagem e também servia como
mesa para descansar os copos de bebida. Um casal de negros dançava
com firmeza. O cara fazia menos movimentos, e sorria um
sorriso até leve. Terça à noite. Três casas de som. Três festas.
Enquanto nos prédio de boy, nem se atreva a aumentar o volume do seu
Youtube no seu notebook.
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Já tinha eu dado
algumas informações àquela senhora sobre como descer no centro
enquanto estávamos no verdinho. Não é dinheiro. Não é maconha. É
só um daqueles micro-ônibus que faz os trajetos menores. E eu só
queria escrever umas rimas. Depois que ela desceu na mesma parada que
a minha, perguntou sobre a estação do metrô, que era logo ali em
frente. E depois de explicar como é que fazia pra sair daquela
estação e baldear pra chegar em Samambaia, nos separamos enquanto
esperávamos o trem. Estava ali eu, já dentro do trem, sentado num banco e com as pernas
em outro, um banco lateral. Bermuda larga, tênis surrado,
pele parda e cabelo black. Nada mais que o check list de um baculejo.
No banco que estava de frente com esse no qual eu apoiava os pés,
percebi que uma senhora de trejeitos simples me olhava. Mas eu só
queria escrever umas rimas. Passados uns cinco minutos e essa mulher
resolveu levantar, o movimento chamou meu olhar e eu pude ver que ela
vinha na minha direção. Sentou no assento lateral ali e me olhou.
Viria me falar de Jesus. Ou então reclamar. Não seria outra coisa.
Mas ela me olhou, e com a liberdade de quem é colega há tempos, me
perguntou sem boa noite nem nada. Você sabe se no Hran tem
dermatologista? Rolei de rir na minha alma. Da onde será que ela
tirou que eu tinha respostas? O que será que poderia fazê-la pensar
que eu sou assistente social, e que semana passada estive no mesmo
hospital com uma adolescente que acompanho para uma consulta de
emergência, nesse labirinto que é o serviço de saúde, até para
quem é profissional de saúde? Pois tive a oportunidade de passar
diversas orientações sobre isso, sobre uma questão do seu
trabalho, que é como empregada doméstica numa casa de família, e
até ajudei a trocar a foto de perfil do WhatsApp dela que ela pediu.
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Já tinha eu descido do
trem, pegado meu carro na estação e estava chegando em casa quando
vi um homem negro, todo sujo e maltrapilho, cabes baixo sentado ali
na outra calçada, quase de frente com a minha. De primeira, pensei
em ficar de olho. Vai que ele tenta entrar pelo portão quando abrir.
Depois me senti um merda, quando lembrei da minha mais nova amiga de
infância do metrô. Talvez um merda precavido, mas um merda. Entrei
com o carro, de olho nos espelhos pra ver se esse cara continuava
cabes baixo e inerte como havia de estar. Me veio à cabeça que, se
eu quisesse escrever essa história um dia, seria uma história na
qual eu sairia como um babaca qualquer, mais um cidadão fulano, e
talvez ver meu reflexo nesse espelho do carro tenha sido o que me faltava para abrir o
portão e ir lá ter com o cara. Tá tudo bem com você irmão? O
cara levantou a cabeça em câmera lenta. Perguntei se ele estava
precisando de alguma coisa. Ele respondeu com uma voz grave e
vibrante, embora falando um pouco baixo, que estava precisando de um fósforo
para acender o cigarro, e abriu uma das mãos, apresentando o que
seria três cigarros ou um cigarro meio partido em três, não sei
dizer. Falei que não tinha, que ele poderia tentar no bar logo ali
na esquina, ele baixou a cabeça, ajeitou os pés na sandália
surrada, levantou e saiu mancando, com seus pés castigados, um pouco se arrastando, rumo ao
bar, com uma camisa de escola pública toda suja, por cima de outra
camisa desgastada, e a aparência de quem não se cuida há um bom
tempo. Enquanto ele dava as costas pra mim, resolvi insistir. Tá te
faltando alguma coisa irmão? Perguntei, enquanto questionava a mim mesmo se
eu teria condições de bancar a resposta, dependendo do que viesse,
ao que ele virou só o pescoço enquanto caminhava e disse, me falta
um fogo para acender meu cigarro, e seguiu, como alguém que só
precisa de um palito de fósforo para resolver o que falta em sua
vida.