Saio de casa
- Me sinto impotente -
O mundo nas costas, me
sinto um fracasso.
Ao longe eu já vejo
que me encara a subida mais íngrime
Se eu valho tão pouco,
então é pouco o que tenho a perder
Monto a bike e em
frente. E enfrento de cara a subida.
De tanto ser pesado,
rola o mundo diretamente das minhas costas ladeira abaixo.
Ao pé da subida, já
posso enxergar umas luzes no cume.
Pedalo e, debaixo,
encaro a subida nos olhos.
Subo por seus peitos e
lhe arranco o respeito
Sequer eu lembrava que
é uma subida que tem umas costas de fazer voar
A cinquenta caeme só
Largo o guidão. E abro
meus abraços. De que vale qualquer segurança
Se a cinquenta caeme
não há garantias
Só vento.
Só vida.
Só eu.
Aterriso ao final da
subida que deixei pra trás
E pedalo.
Eu nem vi quando estava
tão longe de casa, tão longe de tudo,
Tão longe de um eu que eu
deixei para trás.
Que caiu da garupa. Que
rolou pela estrada.
Eis que estou leve, eis
que estou novo.
Eis que minha boca está
seca e paro.
E eu nunca bebi uma
água tão boa.
Sigo girando, a exemplo
do mundo.
Por uns cantos sem
prédios, sem casas, sem gente.
E os carros que rasgam
a paisagem nem sabem
Nem sentem o perfume da
mata
Nem sofrem o gelo dos
ares, da noite de Brasília
Prenúncios do inverno
no qual fui forjado
Os altos e baixos da
vida são outros agora
As baixas são vôos,
cinquenta caeme
E o alto só vem com
esforço, não há privilégios
E não importanta a
fadiga, pois cada pedalada adquire um valor singular
E eu sinto que subo,
que subo, e subir é um lema, é o alvo
O subir é maior que a
subida.
Nem vi que estou alto
E de onde estou vejo a
cidade, o país
- Me sinto imponente -
E realizo que de pedal
em pedal
Eu posso ir a qualquer
lugar do mundo.
Inspiro o ar, inspiro o
ar
E quem sabe de tanto
inspirar
Não acabo inspirando o
luar
Mas de tanto tentar
inspirar o luar
Sabe quem o luar que me
inspira
Faz quase uma hora de
giro
O bastante para uma
existência infinita.
E eu nem sinto mais que
pedalo
Sou uma unidade com
minha bicicleta
Uma simbiose de
presilhas
Eu nem sinto mais que
há os carros
Eles nem me pressionam
Só eu que pressiono o
pedal
Que me cede o mover
E eu orbito de catraca
em catraca
E desenho um sistema
solar entre os eixos da bike
Eu nem vi que
estou perto de casa
Eu fui e voltei, e
trouxe de volta o meu eu
E em meio a endorfina e
suor
Encaro do alto o que
era a subida
Que me brinda o esforço
com uma decida olímpica
A sós, a cinquenta
caeme.
Ortegal